
luísa
luísa sabe bem que não sabe saltar muros.
luísa sabe bem que tem um cabelo horroroso e que a sua mão esquerda é feia. sabe, porém, que se amarrar o cabelo pode pousar a mão esquerda na nuca convencendo homens. (mas depois senta-se e cala-se, porque falando é o fim.) assim vai conjugando os seus defeitos como quem cozinha. houve uma dessas vezes em que falou, dado o aperto, e daí nunca se recompôs. pousou o órgão-mor nas duas mãos, mesmo na feia, e deixa-se transbordar todos os dias. luísa é lirica. luísa sofre pelas causas perdidas à espera de recolocar o órgão. luísa fica quieta. na quarta feira jurou-se devota da luz porque deus não a convenceu. semicerrou os olhos em direcção ao sol, berrou com o pulmão disponível e deixou-se estar até doer. e depois dança, expulsando de si braços e pernas. todas as manhãs, lá vai luísa à sua missa. no fim de tudo, volta a segurar o órgão-mor e prossegue caminho. sempre mais à tua procura do que a caminhar.
por onde anda, luísa canta, para berrar sem que se saiba. mas é demasiado fraca a escolher, porque o faz como quem conta (aquilo cuja história dói por estar suspensa como que desfeita.)
Ana Isa

Sílvia acorda para dormir. Dorme para acordar. Come até lhe doer o estômago de fome. Esta manhã, teve a nítida sensação de ter barrado a manteiga com o pão. Não a incomoda, se há coisa que não entra na ordem natural das coisas é um pão de trigo ou uma embalagem de manteiga sem sal. O copo que tem na mão, já o bebeu, todo. Será um copo completamente cheio de ar ou reconfortantemente vazio?
De vez em quando Sílvia levanta os olhos e procura rachas no tecto, numa tentativa de prever por onde a vida vai desabar. Apenas porque é inevitável que desabe. Sem romantismo, sem dramas e sem lágrimas. é assim e é. As suas moléculas, sabe-o, já foram fria pedra oculta sob a terra viva. em tempos remotos foram um pedaço de fogo da maior explosão de que não há memória. mas fogo arde. silvia não.
Frederico

Abílio
Abílio está sentado, aborrecido. Cansa-lhe respirar este ar morto. Se não fosse a comichão na parte de traz do pescoço, estaria de certo estendido no chão. Passa a mão pela nuca, a comichão pega-se-lhe aos dedos, alastra com modos de formigueiro pela palma da mão, infiltra-se nas fibras dos músculos vermelhos. Abílio irrita-se de ter que acordar da apatia, para combater as larvas transparentes que já lhe percorrem o braço. Sacode-as, morde-se, fita o corpo como que a queimar-se com os olhos. Pensa. Não pensa. O cérebro morde-lhe. Mantém-se sentado, rígido, controla todos os músculos. Contrai-se. Morre. Abílio morre, mas não se mexe. A comichão, as larvas, consomem-lhe o movimento. Água. Uma enxurrada, um dilúvio passa-lhe pelos olhos. Abílio desfaz-se em gotas, ondas e chuveiros.
Rosário
BREVEMENTE
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